sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A flor e o tempo

"Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou ainda de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

(...)

Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

(...)

Uma flor nasceu na rua!
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio."

(Trechos de "A flor e a náusea", de Carlos Drummond de Andrade)

"Nossa mãe, o que é aquele
vestido naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai vem chegando."

(Trecho de "O caso do vestido",
de Carlos Drummond de Andrade)

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

("Cidadezinha Qualquer",
Carlos Drummond de Andrade)

"Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim. "

(Trecho de "Morte do leiteiro",
de Carlos Drummond de Andrade)
"E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro).
O revólver da gaveta
saltou para a mão.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era novo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Da garrafa estilhaçada,
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora."

(Trechos de "Morte do leiteiro",
de Carlos Drummond de Andrade)

O Operário em Construção

"Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo,
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo sua liberdade
Era a sua escravidão. "

(Trecho de "O Operário em Construção",
de Vinicius de Moraes)


Apresentação feita no Projeto Mais Educação.
Para saber mais sobre esse Projeto, acesse:


"Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão."


(Trecho de "O Operário em
Construção", de Vinicius de Moraes)



"Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!"


(Trecho de "O Operário em Construção",
de Vinicius de Moraes)
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Apresentação feita no Projeto Mais Educação.
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"Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!"

(Trecho de "O Operário em Construção", de Vinicius de Moraes)

"Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia."

(Trecho de "O Operário em Construção", de Vinicius de Moraes)
"Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
(...)
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não."


(Trecho de "O Operário em
Construção", de Vinicius de Moraes)

"Disse, e fitou o operário
que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
Em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão."

(Trecho de "O Operário em Construção",
de Vinicius de Moraes)





"E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu."

(Trecho de "O Operário em
Construção", de Vinicius de Moraes)

"E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que virão."

(Trecho de "O Operário em Construção",
de Vinicius de Moraes)


"Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção."




(Trecho de "O Operário em Construção",
de Vinicius de Moraes)
Apresentação feita no Projeto Mais Educação.
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segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Livro dos Dias



Sim! Sim! Sim!
 Não! Não! Não!
.
"Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho."
 .
(Trecho de "O morcego",
de Augusto dos Anjos)
"Pego de um pau. Esfoços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto. "

(Trechos de "O morcego",
de Augusto dos Anjos)

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

(...)

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja esta mão vil que te afaga,
Escarra nesta boca que te beija.

("Versos Íntimos", Augusto dos Anjos)
Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
- Homens que a herança de ímpetos impuros
Tomara etnicamente irracionais!

(...)

Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação.

("Idealização da Humanidade Futura", Augusto dos Anjos)


Não enterres, coveiro, o meu Passado,
Tem pena dessas cinzas que ficaram;
Eu vivo dessas crenças que passaram,
E quero sempre tê-las ao meu lado!

Não, não quero meu sonho sepultado
No cemitério da Desilusão,
Que não se enterra assim sem compaixão
Os escombros benditos do Passado!

Ai! não me arranques d'alma este conforto!
- Quero abraçar o meu Passado morto
- Dizer adeus aos sonhos meus perdidos!

Deixa ao menos que eu suba à Eternidade
Velado pelo círio da Saudade,
Ao dobre funeral dos tempos idos.

("Tempos Idos", Augusto dos Anjos)

O Oratório de Santa Maria Egipcíaca

"Senhor, Senhor, Senhor, eu sou Maria,
aquela do porto de Alexandria,
que desde menina vivo delicada
a amar quem passa pela cidade.
Deixe-me ir para trás, ao menos, para o deserto,
aprender o que está errado e o que está certo,
e voltarei, talvez, se conseguir um dia chegar perto
de Ti, Senhor, e iluminada!"

(Fala de Maria Egipcíaca em "O Oratório de Santa Maria Egipcíaca", de Cecília Meireles)



"Maria, anjo do céu caído,
parte também em romaria,
deixa os delírios de Alexandria,
cobre-te com um denso vestido,
vai ver a vida que da morte se levanta,
no milagre da Terra Santa,
como sai da noite o dia."

(Fala de Voz Mística em "O Oratório de Santa Maria Egipcíaca", de Cecília Meireles)
"'Como sabes meu nome?', perguntou Zósimo sempre assombrado.

'O vento que me ensina o Evangelho
fez-me clarividente.
Sei o nome de amigos e inimigos,
e o de cada pecado:
vejo o futuro como vejo o passado.'

E seu vulto, na verdade, voava e desaparecia.
E Zósimo chorava também por Maria de Alexandria."

(Diálogo entre Zósimo e Maria Egipcíaca em "O Oratório de Santa Maria Egipcíaca", de Cecília Meireles)